Desde os primeiros dias do Império Romano, representações artísticas da deusa Lustitia (latim para Justiça) enfeitam a praça pública. Também conhecida como Dama da Justiça, ela é representada segurando uma balança em uma das mãos e uma espada na outra. César Augusto (63 a.C – 14 d.C) a deu para o seu império, a fim de simbolizar a honra, a moral, o espírito e a autoridade do Estado de direito.

Uma convergência providencial, no entanto, infundiu o legado do imperador com um significado inesperado. Ele seria lembrado muito mais por seu papel no nascimento de Jesus do que por seu apoio à Dama da Justiça. Augusto, involuntariamente, levou [por força do recenseamento] para Belém o Filho que trouxe plenitude de significado ao tipo de justiça que faz o bem por intermédio daqueles que praticam o mal.

Em nossos dias, o teólogo e filósofo Nicholas Wolterstorff escreveu e falou detalhadamente sobre o tipo de justiça que vai além da acusação dos erros. Pesquisando na literatura sobre o assunto, ele percebeu que a justiça veio a ser entendida principalmente em termos de consequência e punição pelos erros cometidos mais do que uma primeira resposta à necessidade humana. O resultado, ele observa, é que tendemos a considerar amor e justiça como necessidades opostas — como defesa e acusação em um tribunal. O amor defende; a justiça acusa.

Entendendo quão propensos somos a ver a justiça sob tal luz, Wolterstorff chama a atenção para o que ele desconsiderou até tardiamente na vida. Quando Jesus nos disse que o amor a Deus e pelo próximo é o maior dos mandamentos, Ele estava fazendo mais do que fazer citações sem um contexto. Wolterstorff percebeu que, quando Moisés disse: “…ame o seu próximo como a si mesmo” (Levítico 19:18), ele estava resumindo o tipo de cuidado e de preocupação cotidianos que faz justiça a todos os membros da comunidade. No contexto, Moisés estava dizendo coisas como:

Respeite aqueles que trouxeram você ao mundo e lhe deram a vida (19:1-8)

Considere o pobre e o estrangeiro quando obtiver lucro por um trabalho (19:9)

Não trapaceie, engane ou roube daqueles que dependem do fato de que você seja honesto (19:11-13)

Wolterstorff observou que tais exemplos de justiça podem ser resumidos simplesmente como: ame seu próximo com a si mesmo. Em outras palavras, Deus ensinou o Seu povo a enxergar amor na justiça e justiça no amor. Ao tratar os outros como queremos ser tratados, podemos evitar a dor que culmina em litígio no tribunal, disputas sangrentas ou guerra.

Contudo esse é um tipo de justiça que, muitas vezes, estava visivelmente ausente na história do povo de Deus. Apenas depois de Jesus a história da Bíblia proporciona um exemplo perfeito do Único que personifica o que significa fazer justiça uns aos outros em amor.

Para Jesus, o preço de se importar com os outros era a marca do reino de Deus. No começo dos Seus três anos de vida pública, todos os olhos estavam sobre Ele enquanto Ele ocupava Seu lugar diante de Sua sinagoga local. Naquele tempo, Ele afirmou ter vindo em cumprimento às palavras de Isaías para ajudar e resgatar os oprimidos. Porém, quando Jesus os lembrou, por meio das próprias Escrituras deles, que Deus tem um cuidado especial com aqueles fora de Israel, a multidão se transformou em uma turba que o enxotou da cidade com intenções de matá-lo. Jesus cumpriu tudo isso no processo de fazer o correto pelo coração de Seu Pai. E Ele o fez ao mesmo tempo em que buscava fazer justiça às necessidades urgentes das pessoas vulneráveis.

No entanto, os patriarcas e mestres da Lei da cidade não acreditaram nisso. Em vez de dançar pelas ruas quando viram Jesus trazendo socorro e advogando pelos que sofriam opressão, eles identificaram Jesus como uma ameaça à fé e ao bem-estar da nação. No lugar de louvar a Deus por enviar ajuda ao cego, ao leproso, ao pobre e até àqueles enlutados pela perda de um ente querido, especialistas jurídicos com uma reputação de defender a Lei mosaica se ressentiram, temeram-no, odiaram-no e, no fim, crucificaram-no.

E se a Dama da Justiça tivesse sido uma pessoa real na multidão daqueles que enxergavam Jesus com o olhar dela? Teria terminado de forma diferente se os compatriotas de Jesus e patriarcas de Jerusalém conhecessem o coração do seu Deus e o espírito das leis confiadas a eles? A Dama da Justiça teria amado Jesus? Imagine-a ouvindo Jesus na sinagoga ou em uma das multidões que o viram curando os fracos e filiando-se aos oprimidos. Imagine-o usando Seu Sermão do Monte para descrever o que significa se importar não só com a família e amigos, mas também com os inimigos. Imagine o que ele teria pensado estando com as amigas de Jesus aos pés da Sua cruz. Ela se uniria a elas em seu pranto pela perda do Homem que parecia entender seu próprio coração pelos fracos, feridos e aqueles que precisavam de um advogado?

Se a honrada Dama da Justiça tivesse sido mais do que uma ideia, ela teria entendido por que Jesus não apresentou resistência às mentiras de Seus acusadores, à ira da multidão e à crueldade da Sua crucificação? Ela teria entendido que aquilo era necessário para que Ele fizesse justiça às nossas necessidades mais profundas e fizesse o certo em relação ao inimigo que, no Jardim do Éden, plantou sementes de dúvida sobre a bondade do nosso Deus? (Gênesis 3:15).

Conceitualmente, a imagem da Dama da Justiça é um simbolismo bom e belo. Mas, por mais ideal que ela seja, ela é só uma ideia. Assim como todo as boas leis e pensamentos escritos pelo dedo de Deus nas tábuas de pedra de Moisés, ela não pode ajudar aqueles que infringiram a lei ou garantir que os tribunais, obrigados a defender a lei, sejam leais ao que lhes foi incumbido fazer. 

Em contraste, Jesus tipifica o tipo de justiça que dá significado completo à verdade, imparcialidade e autoridade moral que a arte de uma nobre estátua simboliza. Ao refletir o coração de Seu Pai, Jesus nos mostrou o que quer dizer mostrar amor pela justiça e justiça pelo amor. Em vez de nos deixar com a impressão de que fazemos o bem aos infratores apenas punindo-os, Ele nos mostrou Seu desejo de transformar opressores em exemplos e advogados. Ao mostrar o coração e espírito da lei, Ele demonstrou que a justiça restauradora é muito mais do que punição. A justiça que faz o certo a todos funciona para restaurar relacionamentos com um Deus compassivo. Ele deseja mostrar misericórdia e perdão, enquanto usa consequências sábias e amorosas, quando necessário, para o bem de todos (Êxodo 34:5-7).

Perguntas para reflexão:

  1. Você acha que misericórdia e justiça possuem significados opostos? Por que [sim] ou por que não?
  2. Como o autor conecta misericórdia e justiça no tocante aos nossos relacionamentos?
  3. Como você pode mostrar “amor através da justiça” e “justiça através do amor” àqueles com quem você trabalha?